Universidade do Vale do Sapucaí
* Artigo publicado nos Anais do I
Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino
Resumo: O artigo tem como objetivo debater as mudanças citadinas e os conflitos
sociais em torno da antiga Estação Ferroviária da cidade de Pouso Alegre.
Podemos dizer que as memórias da cidade estão representadas nos edifícios, nas
ruas e avenidas, nos monumentos, nos prédios. A partir da análise das
fotografias observamos o posicionamento dos políticos na utilização deste
espaço público, os resignificados do prédio e as memórias dos sujeitos sociais
vivenciadas e reorganizadas pela memória hegemônica.
A cidade é
um espaço de sociabilidades nela estão inseridos atores que dialogam suas
relações sociais e que muitas vezes se opõem as decisões do poder público. Além
disso, os significados da cidade estão nos espaços públicos sendo atribuídos
sentidos que se manifestam a partir das diversas memórias.
O espaço
da cidade e as práticas em torno dela também trazem consigo toda uma rede de
representações, de memórias que se entrelaçam construindo o saber e a visão de
mundo que envolve os diferentes sujeitos. “A História precisa ser entendida com
o conjunto de experiências humanas. Ao se fazer um estudo dos grupos sociais
considera-se os significados das práticas coletivas de acordo com as ações dos
sujeitos sociais e das convenções instituídas pelas comunidades” (CHARTIER,
2002, p.123).
Desde o
início o prédio da Estação Ferroviária é visto pela população como símbolo de
progresso para a cidade. A chegada do primeiro trem foi um acontecimento
notável para os políticos da Capital Federal, do estado e do município. Os
trilhos da Estrada de Ferro Sapucahy mudam a mentalidade dos administradores,
tudo que se encontra ao redor do prédio da estação precisa ser remodelado nos
moldes urbanísticos do desenvolvimento.
Foi no dia 25 de Março de 1895 que
aqui chegou o trem inaugural, trazendo a seu bordo a directoria da Estrada,
representantes do governo de Minas, da imprensa da Capital Federal, e grande
numero de convidados pela directoria e pela comissão dos festejos com que a
Camara Municipal deliberou commemorar este notável acontecimento (OLIVEIRA,
1900, p. 81).
A estação
é uma construção singela, em fôrma de chalet; tem uma platafórma regular, mas
pequena para conter a grande massa de povo, que quase sempre ahi se agglomera
por occasião da chegada dos trens. Tem um pequeno armazém para deposito de
mercadorias, dois gabinetes, communicando-se, para o agente e telegraphista,
separados do armazém por um corredor que serve de sala de espera; e accomodações
no restante do edifício para a família do agente (OLIVEIRA, 1900, p. 81).
Estas
obras inacabadas, perto da estrada de ferro, causam má impressão e produzem
verdadeiros contrastes: - aqui a locomotiva symbolisando o progresso, alli as
ruínas symbolisando o atraso. (OLIVEIRA, 1900, p. 83)
Falar dos
resignificados da cidade implica estabelecer conexões variadas com a própria
experiência de viver em cidades. As marcas de afetividade compõem um acervo
especial aos citadinos ao longo do tempo. Lembranças, sentidos, imagens,
discursos se movimentam na memória coletiva. Essas marcas indicam códigos
culturais que são carregados de conflitos, de ideologia, de resistências frente
às práticas políticas que resignificam as imagens na cidade, reorganizando os
sentidos pela memória hegemônica.
A partir
dos conceitos de Thompson entendemos que cultura é uma arena conflitante, onde os sujeitos sociais
trocam diferentes recursos entre o escrito e o oral, o dominante e o
subordinado, a aldeia e a metrópole (THOMPSON, 2001. p. 17).
A autora Yara Aun Khoury contribui
para uma análise sobre memória e cultura:
Considerando
a história um processo de disputas entre forças sociais, envolvendo valores e
sentimentos, tanto quanto interesses, dispostos a pensar e avaliar a vida
cotidiana em sua dimensão histórica, a ponderar sobre os significados políticos
das desigualdades sociais, nossas atenções se voltam para modos com os
processos sociais criam significações e como essas interferem na própria
história. Nesse sentido é que entendemos e lidamos com cultura como todo um
modo de vida (FENELON, 1997, p. 18).
Pertencer
à cidade implica vivenciar experiências sempre remodeladas ao longo do tempo.
Estas práticas cotidianas são reconstruídas pelo pensamento e pela ação dos
sujeitos sociais que criam a cada tempo outras cidades na cidade. Partimos da
seguinte reflexão: qual a função social destinada nos diferentes tempos? Quais
os significados atribuídos a Estação Ferroviária na cidade? Quais os elementos
simbólicos desse espaço reconstruído ao longo dos anos?
A partir
da análise das fotografias observarmos as transformações ocorridas na
utilização do antigo prédio da Estação Ferroviária e seus arredores. Com
o estudo e a análise de imagens podemos observar a questão dos processos
simbólicos.É mediante a análise dos processos simbólicos que se percebe como se
criam os laços de pertencimento entre os membros de uma mesma sociedade, como e
porque a memória coletiva pode unir e separar indivíduos de uma mesma sociedade
ou grupo social, como e porque o imaginário social reforça certas visões de
mundo mesmo quando as condições materiais para que elas existam já tenham
desaparecido. Esses modos de comunicação criam campos de sabe comum; funcionam
como sinais de orientação inclusive para as práticas sociais (BORGES, 2003, p.
79).
De acordo
com Kossoy entendemos o papel da imagem fotográfica enquanto elemento de
fixação da memória, esta fonte histórica deve ser analisada além da superfície.
Ela nos mostra alguma coisa, porém seu significado a ultrapassa. Existe um
conhecimento implícito nas fontes não verbais como a fotografia. “As fontes
iconográficas produzidas através de diferentes formas de expressão gráfica
carregam em si informações sobre certos fatos e sofre a mentalidade de uma
época. Não só completam as informações transmitidas pelas fontes escritas,
como, também enriquecem o conhecimento com dados reveladores” (KOSSOY,
2007, pág. 103-104).
A imagem
fotográfica nos ajuda a desvendar os significados atribuídos aos espaços
púbicos da cidade, revelando assim, o modo como a sociedade interpretava a
dinâmica social desses sujeitos. Assim, a imagem fotográfica fixa um fato
ocorrido em um momento determinado, preservando a imagem das faces, dos
lugares, das coisas, das memórias, dos fatos históricos e sociais. Dessa forma,
a fotografia pode ser percebida como um espelho que possui memória
(BITTENCOURT, 1998, p. 205).
A chegada
da ferrovia em Pouso Alegre, datada em 1895, marcou a chegada do
desenvolvimento comercial e social para a cidade, a Estrada de Ferro Sapucaí,
ligava as terras mineiras ao Vale do Paraíba. Esse movimento em torno da
Estação sustentou durante algumas décadas o transporte nestes veículos de
tração animal e incrementou a vida na cidade.
Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação
Ferroviária
Podemos
notar na fotografia acima o prédio Estação Ferroviária de Pouso Alegre de 1904,
cinco anos após a Proclamação da República no Brasil, pode-se observar a
relação dos habitantes da cidade com o espaço. Além da plataforma, a estação
ainda abrigava uma sala para o telégrafo, bilheteria, um amplo armazém que
abrigava a carga que seria despachada ou recebida, sala de espera e sanitários:
masculino e feminino. Os homens que estão esperando o trem usavam como era
comum àquela época terno, gravata e chapéu. Já os que estão nas ruas se vestem
de uma maneira mais simples. Podemos ver também uma criança enchendo uma lata d
água no chafariz, e alguns homens negociando seus produtos, era um espaço vivo
da cidade.
No
cruzamento da atual Avenida Doutor Lisboa com a Avenida Vicente Simões, podemos
observar que as ruas eram de terra. Em torno do prédio podemos notar que os
meios de transporte eram carroças e carros puxados por animais. Homens de
diferentes classes sociais moldam o cenário da cidade. A fotografia mostra os
conflitos da época, de um lado a presença do desenvolvimento e do progresso
simbolizados na Estação, do outro lado, traços rurais da cidade, coexistindo
com os ideais republicanos da época.
...pode-se
identificar o começo do que virá a ser o urbanismo moderno no encontro
necessário entre o saber médico e as técnicas da engenharia, configurando as
bases das práticas sanitárias que até as primeiras décadas deste século
mantiveram-se como referência para as intervenções nas cidades. (BRESCIANI,
2001, p. 244).
Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação
Ferroviária – 1930
Nesta
fotografia da década de 30 percebemos mudanças em torno da Estação. É nítido o
aumento do fluxo de pessoas em volta do prédio (homens, mulheres e crianças).
Ao fundo a direita, podemos notar a presença de carroças e animais, mas também
aparecem automóveis, símbolos da modernidade, nas ruas empoeiradas da cidade.
Elementos simbólicos do rural e do urbano mostram o espaço resignificado pelas
práticas sociais. Os ideais de progresso da década de 30 estão pautados na
ideia de modernização, tendo como pano de fundo a industrialização que
começa a aparecer no país.
Os conflitos sociais retratados nas fotografias nos dão dimensões dos
espaços de discussão no contexto urbano, nos dizem como as disputas ocorrem e
nos mostram as transformações que resultam delas, recuperam também, questões
pertinentes às relações sociais advindas do campo e experimentadas na cidade
É também um modo de recuperar a importância da imaginação simbólica na
vida social. Quando dizemos que uma imagem “fala por si mesma” e nos interpela,
estamos supondo que é possível estabelecer um diálogo, tratá-la de certa forma
como um”sujeito”que faz suas próprias perguntas e nos interroga, e não como
objeto passivo e inanimado (ALEGRE,
1998, p. 68)
Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação
Ferroviária 1980
Já nesta
imagem da década de 80, período em que a Estação Ferroviária foi desativada,
podemos perceber mudanças no espaço urbano, as ruas estão calçadas de
paralelepípedos, e em torno do prédio percebe-se o aparecimento de moradias
residenciais. No chão, os trilhos por onde passavam os vagões e muitas
histórias de vida, perdem o sentido e o lugar remete a uma cidade fantasma, que
novamente é resignificada pelas políticas públicas vigentes. Os atores sociais
que vivenciarem experiências em torno do cruzamento das duas artérias centrais
da cidade são outros. Cabe aqui, ressaltar que neste período o Brasil era
governado pelos militares que discursavam os ideais do Milagre Econômico.
Muitas indústrias estrangeiras investiram capital no país, principalmente, as
do setor automobilístico. Os trens deram lugar à malha rodoviária, mas o prédio
e seus significados permaneceram vivos nas lembranças dos sujeitos sociais que
circulavam e trabalhavam na Estação. “É
preciso, portanto, não apenas recuperar os traçados dos múltiplos percursos,
como também identificar as diversas maneiras de caminhar; não apenas inventariar
os lugares, como analisar as maneiras de se apropriar dos lugares”(BARROS,
2007, p. 45).
Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação
Ferroviária – Década de 80
Em 1988, o
prédio da Estação foi reformado e adaptado para abrigar a “Casa da Cultura
Menotti Del Picchia”, tendo funcionado aqui uma galeria de artes plásticas, a
Secretaria Municipal de Cultura e a Biblioteca Municipal “Prisciliana Duarte de
Almeida”. Menotti Del Picchia, um dos líderes da Semana de Arte Moderna
de 1922, o príncipe dos poetas brasileiros estudou no Ginásio Diocesano São
José, de Pouso Alegre. Durante os tempos de colégio na cidade escreveu seus
primeiros poemas, dirigiu o jornalzinho o Mandu, e recebeu da Câmara Municipal,
o título de cidadão pouso-alegrense.
A partir
desta data, o espaço público é resignificado, nele é estampada a marca da
cultura da cidade. O local anteriormente marcado por lembranças do vai e
vem dos vagões do trem, é simbolizado pelas práticas culturais dos artistas da
cidade e região e pelos admiradores das diversas expressões artísticas que ali
eram produzidas e expostas. Outros discursos são ecoados, outras imagens são
projetadas, outras histórias são contadas, outros conflitos habitam o espaço.
Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação
Ferroviária - 2000
Atualmente
o prédio é utilizado como o Centro de Convivência do Idoso. “O tombamento da
Estação Ferroviária ocorreu em 1999 com o decreto nº 2349/99.” Percebemos aqui
outra marca no prédio, em outro lugar da edificação, com outros sentidos
exposto na logomarca ‘Centro Cultural de Convivência do Idoso’ que marca o
antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre. Ao analisarmos os
dizeres atuais, notamos que o espaço agora não é mais o espaço da cultura, mas
sim, de um determinado grupo social, limitou-se as práticas vivências neste
espaço público. Por que a administração pública resignificou este espaço
público? Por que a administração atual mantém esta significação? Que interesses
estão em jogo?
Cabe ressaltar, que somente ao
caminhar pelas ruas de Pouso Alegre, podemos realmente notar seus
resignificados, dentro de suas práticas culturais, permeados de valores,
costumes e de experiências de vida na cidade.
Demonstra-se assim, as múltiplas
possibilidades de fazer da história um constante exercício de construção. A
proposta desta pesquisadora foi desvendar e refletir sobre as múltiplas
experiências do cotidiano pousoalegrense, buscando na dinâmica da cidade os
diferentes sentidos dos sujeitos sociais.
No sentido
de que a cidade é um espaço marcado pelos interesses políticos, entender os
significados das políticas públicas, seus processos de formação e os outros
sentidos que seus idealizadores deram ao antigo prédio da Estação Ferroviária
de Pouso Alegre. Neste artigo, muito mais que contar os resignificados do
antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre procuramos problematizar
as diferentes relações sociais no universo citadino, de acordo com a visão de
mundo desses sujeitos, que constantemente mesclam os seus viveres com outros
segmentos da sociedade, onde todos aparecem engajados na construção de uma teia
que se encontra sempre em conflitos nos meandros do poder público.
Referências bibliográficas
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Maria Sylvia Porto. Reflexões sobre iconografia Etnográfica: por uma
hermenêutica visual. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas Ciências
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BITTENCOURT,
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BORGES,
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BLOCH,
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FENELON,
Déa Ribeiro (et. al). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo:
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KOSSOY,
Boris. Os Tempos da Fotografia: o
efêmero e o perpétuo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
THOMPSON,
E. P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
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